sexta-feira, 14 de maio de 2021

"Quem não tem cão caça com gato": FHC diz que vota em Lula se não houver terceira via

 "Quem não tem cão caça com gato": FHC diz que vota em Lula se não houver terceira via

Maria Cristina Fernandes | Valor

São 432 páginas, que percorrem 90 anos de vida, a serem completados no dia 18 de junho, e outras tantas décadas de sua ancestralidade, mas o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso diz que tirou tudo da memória. Sem consulta. Isso num momento em que todos trabalham no limite de suas forças sob a pressão da pandemia. Ele não está se gabando. Pelo contrário. Essa história de que é vaidoso é intriga da oposição. A conversa com o autor de "O intelectual na política" começou por aí e terminou no pós-bolsonarismo, que ele teme que não chegue tão cedo. Está disposto a ir até com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2022 para abreviá-lo. A seguir, a entrevista, por Zoom, na tarde de segunda-feira, a partir do escritório de seu apartamento, em Higienópolis, São Paulo: 

Valor: Seu livro vai surpreender os críticos de sua vaidade. Eles estavam errados ou o senhor se desapegou? 

Fernando Henrique Cardoso: Sempre fui do mesmo jeito. Tenho pouca vaidade intelectual. Sou desleixado com tudo. Criaram um personagem que não sou.

Valor: Tem um aspecto intrigante na genealogia de uma família de militares, imbricados na história do país desde o século XVIII. A impressão é que o senhor, sem nunca ter vestido uma farda, venceu a todos. Seu pai, por exemplo, foi preso em 1922, apesar de filho de general, e não foi capaz de manter a aliança que o elegeu deputado federal em 1954. Com o senhor foi o contrário. Nem foi preso e manteve a aliança que o reelegeu presidente. Foi lição aprendida em família? 

FHC: Com certeza. Meu pai era muito aberto e muito simples. Minha avó era mais metida a besta. Meu pai tinha o jeitão de minha família, todos militares. Meu bisavô tinha título de brigadeiro. Meu tio-avô foi ministro da guerra de Getúlio. Nunca quis seguir a carreira nem ele nunca me empurrou para que seguisse. Não penetrou na minha alma. Tinha aversão a arma. Nunca dei um tiro de revólver. E meu pai, apesar de ser militar, não era militarista. Foi deputado pelo PTB. Todo mundo era getulista. 

Valor: Tem um traço que percorre todo o livro que é o sempre olhar de fora para dentro mesmo quando o senhor está dentro. Sentia-se paulista no Rio e carioca em São Paulo. Intelectual entre os políticos e com o pulso da política real entre os intelectuais. Miguel Reale mirou o que viu e acertou no que não viu quando disse que o senhor não era um teórico, mas um prático? Como o senhor define esse modo de ser? 

FHC: Gosto de ler livro e dar aula, mas sempre tive um sentido prático da vida. Quis ser padre, mas nunca quis seguir a carreira militar de minha família. E nunca tive entusiasmo pela vida política. Sempre recuo em busca de certa objetividade. Quando cheguei ao Senado, o pessoal achava que eu era subversivo. Nunca fui. As pessoas se sentem desconfiadas porque achavam que você não é parte do jogo. Na Presidência, então, nem se fala. Falava mais com quem me servia porque eles diziam o que pensavam. Se você não é capaz de ouvir o outro, não faz política. 

Valor: O senhor conta que não queria disputar a Presidência, mas falou para o então secretário do Tesouro americano Larry Summers que era candidato quando nada havia sido definido. Era o Plano Real que estava em jogo. Aquele compromisso ajudou a selar sua candidatura? 

FHC: Não. Apenas percebi que ele tinha interesse no tema. Não foi no sentido de ter interesse americano na minha candidatura. Não poderia pensar assim, com a família que eu tinha. Na verdade, numa eleição, isso pesaria contra mim. 

Valor: O senhor viveu, na Presidência, a pregação do arrocho no "Consenso de Washington" e hoje estamos diante de um plano Biden, que prevê mais de US$ 4 trilhões em gasto social e investimento público. Vai contaminar o Brasil? 

FHC: O Brasil vai retomar o investimento público porque é necessário. A obsessão fiscal tem limite. Os EUA estão certos em soltar o gasto. Soltar um pouco o gasto é necessário, muito pode impactar a inflação. O Estado sempre foi um rompedor de barreiras. Tem que cuidar de política de renda. Nunca fui gastador. Na época da inflação era difícil, o FMI vinha e reclamava, mas nunca nenhum estrangeiro me disse faça isso ou aquilo. Tem que ter estrada, tem que ter educação, e tem que ter certo equilíbrio. O sapato americano está apertando, e o calo, doendo. Quando passar a crise eles vão voltar a ser ortodoxos, mas não podemos sufocar o país para salvar a economia. 

Valor: O livro fala da importância do apoio empresarial para o embate com a ditadura. Por que não se vê o empresariado mobilizado hoje para conter o bolsonarismo? 

FHC: Neste momento é difícil o empresariado se posicionar. Naquele momento era diferente. Havia líderes empresariais que propunham o desenvolvimento do país. Hoje a coisa é diferente. A capacidade produtiva está menos concentrada aqui. Eles têm menos interesse porque têm menos necessidade. São os políticos que têm mais interesse. A burguesia se internacionalizou. A alavanca do crescimento é a população do país. O empresariado tem mais força do que pensa que tem e, por outro lado, a gente atribui mais poder do que eles têm. 

Valor: O senhor rejeita a caracterização de fascismo para o Brasil de hoje. Quando o senhor vê o armamento de civis, matanças como a de Jacarezinho e a anomia da Procuradoria-Geral da República, o senhor acha que, de fato, as instituições têm resistido a Bolsonaro e resistirão se tentar mudar as regras do jogo de 2022? 

FHC: Ele tem impulsos autoritários, mas não vai poder fazer o que quer. Isso não quer dizer que estejamos seguros. Temos que continuar lutando, sempre. Quando se vive num regime mais fechado, você vai dormir com medo. Os mais pobres têm medo da polícia, mas quem está ligado à vida política não tem. Estivemos mais próximos do fascismo em outros momentos da história, como no Estado Novo. Chamar o governo de fascista hoje é um erro. Do ponto de vista de um sociólogo tem que se ter precisão. Pode ter um gesto fascista, mas não é fascista. No fascismo não tem liberdade de ação, não tem eleição. É diferente. 

Valor: O senhor não cita o nome de Bolsonaro. Limita-se a dizer que é "o capitão que se quer mito". Foi deliberado? 

FHC: Tenho uma distancia psicológica dele. Não consigo entendê-lo. 

Valor: O senhor fala no livro que a superação deste momento passa pela formação de um novo bloco de poder que tenha força suficiente para reconstruir o Estado e que não se restrinja aos partidos. Englobe produtores e consumidores, assalariados e empresários, quadros civis e militares. O senhor vê a possibilidade de um segundo turno sem Bolsonaro? O PSDB tem condição de liderar uma terceira via que acabe por polarizar com o ex-presidente Lula? 

FHC: O PSDB perdeu capacidade de atração e condição de ser fator real de poder. Isso não quer dizer que não há o que fazer politicamente no Brasil. Se deixar as coisas soltas vai dar Bolsonaro de novo. Respeito quem teve voto. Se ele está lá é porque teve voto. Terceira via depende de alguém que incorpore e fale com o povo. Não é só ter ideia, ou incorpora em alguém e personaliza ou não existe. Quem vai ser candidato? No Brasil tem que falar com o povo. Escrever conta menos do que falar. Bolsonaro simboliza algo para a classe média baixa porque transformou Lula no que ele não é, um comunista, uma ameaça para a democracia. Lula nunca esqueceu o povo, mas sempre cativou o outro lado. Ele é assim. Mas não será visto assim pelos eleitores de Bolsonaro. 

Valor: E o PSDB tem condição de liderar uma terceira via? Com quem, o governador João Doria? 

FHC: Pode ser, mas não creio que ele tenha o conjunto de características que mova o Brasil profundo. Me dou bem com ele. Foi prefeito e é governador. Respeito o Doria. Ele governa, mas será que ele vai encarnar uma terceira via? 

Valor: A candidatura de Tasso Jereissati é balão de ensaio? 

FHC: Gosto muito de Tasso. Ele é competente e bom. Só não sei se ele vai se jogar. Se ele se jogar, acho que o PSDB está bem representado. É um empresário que tem o sentimento do povo. Ele conhece a vida política e tem generosidade para ser presidente. É o que o PSDB tem de melhor, mas na política tem que se jogar. Hoje há vários, mas tem que ter um só. Espero que apareça e toque no coração das pessoas. Conheço [o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo] Leite, [o ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique] Mandetta e [o apresentador de TV, Luciano] Huck. Se forem capazes, apoio. Não queria ser presidente desde pequenininho. As circunstâncias acontecem. Se o candidato souber aproveitar, vai, mas tem que ter consistência e encarnar. 

Valor: Mas diante das dificuldades de encontrar um nome arrebatador para a terceira via, o cenário mais provável é da polarização entre Bolsonaro e Lula? 

FHC: Temo que esse venha a ser o cenário mais provável e que Bolsonaro ganhe outra vez. Depende do clima que se crie. Vão inventar que Lula é isso ou aquilo. Já votei no Lula. Difícil que Lula seja representante da terceira via, embora ele, na alma, seja isso. Ele simboliza e tem eco. 

Valor: Se a polarização houver, o senhor mobilizaria o país por Lula, como fez em 1989, quando subiu no palanque petista, junto com Mario Covas, sob vaias, para pedir voto para ele? 

FHC: Espero que não seja necessário, mas se for, provavelmente, sim. PT é um partido importante que se organizou. Não tenho medo do PT. Não sei se representa o futuro do Brasil, mas Bolsonaro representa um futuro que não tem meu entusiasmo. Se não houver uma terceira via significativa, vou de Lula. Quem não tem cão caça com gato. 

Valor: O senhor foi muito generoso com antecessores e sucessores. O senhor descreve Sarney como hábil, democrata e competente, Itamar como turrão e difícil, mas determinado, corajoso e íntegro. Lula como fundamental para a votação que o senhor teve para o Senado, intuitivo, esperto e que sempre falou bem. É um chamado para que os rivais baixem as armas? 

FHC: Itamar Franco é uma pessoa respeitável. No impeachment [de Fernando Collor] me chamou lá para saber o que aconteceria. "O senhor vai ser presidente. Em São Paulo acham que o senhor é difícil." Ele não tinha noção da complexidade do país, mas sou muito grato ao Itamar. Não tenho sentimento de que ele pôs qualquer interesse dele à frente do país. E sempre falei bem de Lula, mas nem sempre o inverso foi verdadeiro. 

Valor: Quando o senhor fala dos aliados com os quais governou, o senhor cita um colega do Conselho Universitário da USP: "Ninguém é malandro o tempo todo; mais grave são os opacos, que nada entendem e pensam saber tudo". Hoje não apenas o valor das emendas ao Orçamento como a obrigatoriedade de sua execução alcançaram um patamar nunca visto, foram subindo à medida que os governos se encrencaram e o Congresso foi subindo o preço do resgate. Os malandros de hoje são mais malandros do que o do passado ou faltam regras para contê-los? 

FHC: Não é fácil governar. Não é fácil governar o Brasil, os EUA ou a França. Você tem que ter a capacidade de mobilizar o povo. Hoje não adianta ter os militares. Os militares vão atrás do povo. Nunca tive dificuldades com os militares. Sempre falei com os militares. Não creio que estejamos numa saída autoritária dada. O que falta é audácia e ter um sentimento contemporâneo. O que a população quer hoje é alguém que expresse esse momento. Acho Lula um pouco datado. Bolsonaro agrega gente deste momento. Ainda não sabemos quem representa o futuro. Tem que ter pessoas que se joguem na vida política. O caminho se faz ao caminhar. Tem que criar o caminho e tem que falar. Não existe política sem palavra, sem verbo. O que eu puder fazer para abrir um terceiro caminho, farei. 

Valor: No fim do livro o senhor diz que a partir da morte de sua primeira mulher, Ruth, aumentou a sua convivência com a memória dos mortos que lhe são queridos. Que o senhor hoje convive com quem não está mais aqui, com o que o senhor chama de "comunidade espiritual". O senhor fala, eles não respondem, mas o senhor se sente bem. Como é isso? 

FHC: Não é por espiritismo. É no sentido da memória. Acabei de perder um grande amigo, o Leôncio [Martins Rodrigues, sociólogo]. As pessoas morrem e você continua se referindo a elas. É nesse sentido. Getúlio morreu há muito tempo e ainda falo dele no presente. Na minha memória, ele existe. Esse livro é uma conversa com os que se foram. Porque estou partindo. 

Valor: Mas o senhor diz que não se sente velho... 

FHC: Mas o fato é que estou. E você fica mais memorialista. Você vive mais de suas memórias do que de pensar o futuro. Me tornei mais memorialista do que escritor, mais ligado àqueles com quem convivi. Mas, enquanto você se sentir capaz de reinventar o mundo, vale a pena querer viver e partilhar um sentimento comum com os outros. 

https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2021/05/14/quem-nao-tem-cao-caca-com-gato-fhc-diz-que-vota-em-lula-se-nao-houver-terceira-via.ghtml

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