terça-feira, 24 de março de 2020

MP297/20 – A “SOLUÇÃO FINAL” NA PERIFERIA DO CAPITALISMO EM TEMPOS DE PANDEMIA



Foi durante a segunda guerra que o termo “Solução final” surgiu, com o objetivo de dar um destino aos judeus de todo o território alemão. Esta “solução final” era, basicamente, genocídio – eliminar fisicamente todas e todos que se enquadrassem como “indesejáveis” pelo nazismo, especialmente os judeus.
O Brasil atual não passa por uma guerra, tal como a Alemanha nazista, mas aprofunda uma crise (ou várias crise dentro de uma crise geral) sem precedentes. A pandemia de covid-19 coroa uma série de desastres ecológicos, sociais e econômicos ampliados pelo Estado brasileiro, que busca radicalizar ainda mais estes problemas. O despreparo organizacional e o desequilíbrio mental do governo, especialmente de Jair Bolsonaro e família, ficam claros a cada nova declaração pública sobre estes casos, tratado-os com desprezo e desinteresse. Estes fatos porém, se unem à ganância dos poderosos (políticos e megaempresários, especialmente), que em meio da instabilidade generalizada, buscam formas de extrair, eficaz e rapidamente, mais riquezas do suor dos trabalhadores. Nada de novo no front, inclusive. Esta tem sido a tradição econômica e política atribuída à região da América Latina desde o início de sua ocupação, em 1492 – importar matérias primas (commodities, no linguajar economicista) a preços irrisórios, através da superexploração do trabalho, da flexibilização de leis trabalhistas, do repasse de preços absurdos para consumidores, da brutalidade das forças de repressão, da miséria política, da inexistência de um espaço público, república e democracia sólidos. Como já havia dito Darcy Ribeiro sobre a educação – e que aqui tomamos a liberdade de aplicar sua lógica a organização político-econômica do país, a crise não é uma crise, é um projeto. Tudo milimetricamente calculado para dar errado, pois assim, aos poderosos, tudo segue “certo” e confortável.
Hoje (23/03) acordamos com um soco no estômago. A MP 297/20, dentre outras atrocidades, garante a suspensão do salário mínimo por pelo menos 4 meses. Patrões são obrigados a dar “cursos de qualificação” online, mantendo planos de saúde. A cereja do bolo é que o acordo para esta MP vigorar nas empresas é uma negociação individual entre patrões e trabalhadores. Tomando a realidade brasileira, não há como não nomear esta desumanidade de “a solução final” na periferia do capitalismo. Estamos falando de um extermínio em larga escala, pela fome e pela peste, de trabalhadoras e trabalhadores regulares, e muito mais aos que não se encaixam nessa equação empregatícia (tais como autônomos, trabalhadores sem carteira assinada, desempregados, pessoas em situação de rua, camponeses, indígenas, dentre outros), enquanto patrões relaxam em suas quarentenas, tendo todo o suporte econômico e médico possível para sobreviverem ao coronavírus e a crise geral. Falamos em suspensão salarial poucos dias depois do anúncio do BNDES, que injetará 55 bilhões de reais “na economia” – isto é, no bolso dos ricos, ou nas palavras do presidente da entidade, “Nosso objetivo é ter mecanismos que assumam risco para os empreendedores”, ou mesmo da liberação de recursos para planos de saúde privados. Enquanto isso, os bancos também lucram rios de dinheiro com a crise. Resumo da ópera: nós, os “debaixo”, pagaremos pela riqueza dos poderosos, ao passo em que também pagaremos pela nossa própria morte. Precisamos lembrar ainda que como outra “solução” proposta por entidades próximas ao governo está a redução de 50% do salário durante a quarentena, o que não permitirá, muitas vezes, sequer o pagamento do aluguel de uma casa. Enquanto isso, temos 1 trilhão de reais indo para o ralo com o pagamento da dívida pública, que, caso estivessem dispostos de fato a salvar o povo, já teriam suspendido este absurdo e destinado seu valor à ampliação do SUS.

CONTRA A SOLUÇÃO FINAL – CONSTRUIR E RECONSTRUIR OS COMUNS!

Peter Linebaugh, em sua obra “Ned Ludd e a Rainha Mab”, editada este mês por nós, traz uma brilhante análise de como em todo o mundo, manifestações das forças naturais (um terremoto nas Américas, um vulcão na Ásia, um cometa) nos inícios da década de 1810 foram interpretadas como o prelúdio de mudanças na estrutura da sociedade. Os “cercamentos” buscavam estabelecer novas relações de poder e trabalho: territórios, estruturas logísticas, exércitos e meios de produção – tudo isso, de forma separada e conjunta, tratava de estabelecer o domínio do capital sobre os povos e seus corpos a nível planetário. O autor nos deixa uma provocação ao fim do livro: “Os únicos antagonistas eficazes devem ser os comunais de todo o mundo, com imaginação suficiente para ver na erupção de um vulcão, num terremoto e no rastro de um cometa os presságios da mudança planetária e a remodelação das nações e dos governos do mundo”. Tenhamos capacidade, então, de como antagonistas do presente que somos, enxergarmos no coronavírus e em todo este vale de lágrimas que se desenha sobre nós, o prelúdio de algo maior e melhor para todos e todas nós, que não virá, porém, sem grandes esforços coletivos. Nos Estados Unidos, vemos estes esforços em motins contra o despejo de estudantes, greves em redes de fastfood criadas por trabalhadoras e trabalhadores que não são remunerados por insalubridade e nem possuem EPIs, e a criação de grupos de auxílio mútuo para o socorro de pessoas pobres no grupo de risco; Na Espanha, a Confederación Nacional del Trabajo (CNT) mantém canais de divulgação para expor empresas que não fecharam durante a pandemia e criam manuais de direitos laborais para o período; na Itália e no Chile, rebeliões em presídios estouram quando detentos tentam sobreviver ao covid-19; Em Rojava, no coração do oriente médio, os comitês de saúde desenvolveram junto a colaboradores holandeses, um teste de 30 segundos para o coronavírus; No Brasil, acompanhamos fatos similares, especialmente na criação de Comitês de Solidariedade Popular, mantidos pela Casa da Resistência (no instagram @casadaresistencia), de Feira de Santana-BA, ou em Parnaíba-PI, segunda “sede” da Terra sem Amos, onde grupos se mobilizam para fabricar EPIs (no instagram @phb.em.luta) ou para arrecadar alimentos para famílias em situação de pobreza (no instagram @quarentenasemfome).
“Exigir o impossível para conquistar o possível”, como diria o anarquista russo Mikhail Bakunin, que em 1850 enviava uma inspiradora carta à uma amiga (Mathilde Reichel), demonstando à ela que todos os combates até ali travados, embora derrotados momentaneamente, ecoariam pelos séculos e que é somente dentro das tempestades societárias, onde as soluções sociais podem surgir, numa luta constante entre o velho e o novo – o que Linebaugh certamente chamaria de “luta pelos comuns”: práticas de autodefesa e/ou solidariedade comunitárias, populares, horizontais e igualitárias. Encerramos nossa curta reflexão com um trecho desta carta, para nos lembrarmos de que novos tempos se avizinham, e que por isso mesmo, nossa capacidade imaginativa de um mundo melhor, nossas esperanças, devem estar, mais do que nunca, vivas e pujantes. Ao fim e ao cabo, venceremos o coronavírus, assim como venceremos as condições que nos empurram para a fome, para a doença e para a morte. Um mundo que caiba outros mundos é possível! Só o povo salva o povo!
“Eu sei, você odeia as tempestades; e com razão? Aí está a questão. As tempestades no mundo moral são tão necessárias quanto na natureza: elas purificam, rejuvenescem a atmosfera espiritual, elas desenvolvem as forças sonolentas, elas destroem o destrutível e dão ao eterno vivo um brilho novo, que não se pode apagar. Na tempestade, respira-se mais facilmente; é somente no combate que se aprende o que um homem pode, o que ele deve, e, na verdade, uma tempestade semelhante era uma necessidade do mundo atual, que estava bem perto de sufocar com seu ar empesteado. Mas a tempestade está longe de ter passado; eu acredito, estou firmemente convencido de que aquilo que nós vivemos (1848-49) foi apenas um fraco começo do que ainda virá e durará muito tempo. A cura nos será tanto mais difícil quanto mais perigosa tiver sido a doença, e a doença é incomensurável”.
– Mikhail Bakunin. Carta à Mathilde Reichel. 16 de fevereiro de 1850.

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