terça-feira, 10 de novembro de 2020

Algo mudou no Brasil

 



Imagine uma vítima de violência sexual que passa dois anos denunciando seu agressor sem que nada aconteça. Imagine também que em meio a sua luta por justiça, ela é humilhada, agredida e desrespeitada por quem um dia jurou defender a lei e os direitos humanos. 

Essa é a realidade da promotora de eventos Mariana Ferrer, que desde 2018 denuncia ter sido estuprada pelo empresário André de Camargo Aranha. Na semana passada, Mariana finalmente foi ouvida. 

A reportagem do Intercept sobre o caso parou o país. Em poucas horas o vídeo que mostra a violência a qual Mariana foi submetida durante uma audiência se espalhou e foi visto por milhões, causando indignação, mobilizando manifestações de apoio à jovem e expondo uma realidade que afeta todos os dias as mulheres brasileiras. Furamos todas as bolhas e conseguimos fazer com que todo mundo, do STF aos veículos de imprensa, de deputados a artistas, jovens e idosos, todos olhassem para aquela situação e pedissem justiça. O caso de Mariana, graças ao jornalismo, não será mais um em que a vítima é esmagada por nosso sistema penal. Não será mais um caso em que a vítima será "culpada" pela violência que sofreu. 

A reportagem de Schirlei Alves revelou imagens revoltantes, expôs a conduta desrespeitosa, para dizer o mínimo, de Cláudio Gastão da Rosa Filho, advogado do réu, e mostrou como vítimas de crimes sexuais são tratadas no país. Mariana não é a única e por isso essa matéria teve uma repercussão inédita na história do Intercept. 

Na terça à noite o texto já havia sido lido por milhões. "Estupro culposo", expressão que resume a absurda tese do promotor ao defender a absolvição de Aranha, argumentando que o acusado não tinha como saber se Mariana estava em condições de discernir ou de oferecer resistência ao ato sexual, dominava as redes sociais e foi repercutida por praticamente todos os veículos brasileiros. Vimos incrédulos o Jornal Nacional exibir um material produzido pelo TIB — vocês sabem que isso não aconteceu nem na Vaza Jato. Jornais e sites nos Estados Unidos, Espanha, Portugal e França também noticiaram — para citar apenas o que nós vimos. Atos foram realizados no Brasil e em outras capitais pelo mundo levando milhares de pessoas às ruas. Pesquisadores, criminalistas, jornalistas, professores, juízes escreveram sobre o caso, seus desdobramentos e, claro, fizeram críticas ao nosso trabalho, o que é parte do jogo quando você produz o tipo de jornalismo que nós produzimos. Tudo muito bem-vindo, porque o jornalismo existe pra isso: para mobilizar a sociedade, denunciar malfeitos, promover justiça, mudar o mundo. 

Na Câmara Federal, grupos de deputadas protocolaram dois projetos de lei: o 5091/20, que tipifica o crime de “violência institucional” praticado por agente público — com pena de três meses a um ano de detenção e multa; e o 5960/2020, que veda qualquer parte envolvida e o juiz de se manifestarem sobre fatos e provas que não estão nos autos. A Comissão Nacional da Mulher Advogada da OAB Nacional repudiou a condução da audiência e pediu a apuração da ação ou omissão de todos os agentes envolvidos. O ministro do STF Gilmar Mendes classificou como “tortura” a humilhação promovida contra Mariana e pediu investigação. A Procuradoria da Mulher do Senado vai pedir a anulação da sentença que inocentou Aranha.  

Testemunhei nos últimos dias milhares de mensagens, vídeos, charges de apoio a Mariana e ao nosso trabalho. Algo mudou de terça-feira pra cá e foi o jornalismo o motor dessa mudança. Pela primeira vez vi um caso de violência sexual mobilizar tanta gente e do jeito certo. 

Histórias como essa são sempre difíceis de reportar. Porque expõem as vítimas e podem causar sérios danos a elas. A gente nunca sabe como será a repercussão e o que ela pode gerar. É preciso muito cuidado e paciência. Há pouco tempo, trabalhamos exaustivamente nos casos relacionados ao produtor Gustavo Beck, aquela história que foi marco do movimento Me Too no Brasil. A repercussão também foi enorme, especialmente fora do país, e ficamos felizes de ver que as vítimas não foram publicamente questionadas. O jornalismo cumpriu seu papel e o fez da melhor maneira possível.

O caso de Mariana tomou outras proporções e foi muito, muito bom perceber como foi positivo o retorno da sociedade. A vítima foi respeitada, acolhida e a ela se juntaram milhões pedindo justiça. Como afirmei na nossa newsletter de sábado junto com o editor Alexandre de Santi:

"Em meio a tanta dor, traz alento perceber a união formada em torno dessa ideia simples e poderosa: se uma mulher for estuprada, jamais será sua culpa, e muito menos podemos consentir com a tese de que alguém pode cometer um ato sexual sem ter plena certeza de que a mulher consentiu. Não existe estupro culposo."

Quis escrever para trazer um balanço dos impactos desse caso para você. Os primeiros dias foram muito intensos e talvez você não tenha conseguido acompanhar tudo. Eu também quero agradecer a cada pessoa que lê, compartilha, espalha e defende o trabalho do Intercept. Milhões de novos leitores chegaram no site na semana passada, mas você faz parte do nosso time há um tempo e sabe que reportagens assim estão no coração do TIB.

Fazer investigações de grande impacto e responsabilizar pessoas com poder para se safar da justiça é a nossa missão. O Intercept não tem rabo preso, não tem acordo com governo, com empresas, com juízes. Nosso único compromisso é com nossos leitores e com cada pessoa vítima de injustiça. Essa independência e coragem nós devemos a pessoas como você, que nos apoiam todos os dias, doando e nos protegendo dos ataques daqueles que querem nos parar. 


Paula Bianchi
Editora

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