Por Sérgio Amadeu da Silveira
No Brasil e nos Estados Unidos, a extrema direita alternativa e populista continuará utilizando a desinformação e o desvirtuamento dos fatos para destruir as possibilidades de debate racional sobre a ideia de renda mínima. A desinformação não é fundada apenas nos exageros, equívocos ou na irresponsabilidade pública. Trata-se da principal estratégia do novo reacionarismo e do neofascismo denominado por muitos pesquisadores de populismo de direita. Os chamados Nrx, os neo-reacionários, continuarão investindo na doutrina anti-igualitária presente no texto Dark Enlightenment, do filósofo inglês Nick Land.
As grandes consultorias empresariais desde o início da pandemia publicam documentos e especulam como será o novo normal do planeta. Quais as características da nova normalidade? Voltaremos a viver como antes? Teremos grandes ou pequenas alterações nas práticas cotidianas que tínhamos antes da pandemia? Essas perguntas geram suposições baseadas nas tentativas de identificar e compreender as tendências a partir dos embates atuais.
É importante notar que essas questões não podem ser respondidas como se as sociedades fossem atingidas do mesmo modo. É necessário considerar as profundas diferenças entre grupos e segmentos que as compõem. Também precisamos ponderar como agem em cada sociedade as estruturas de reprodução das condições de desigualdade e outros mecanismos de manutenção de assimetrias e racialidade. O novo coronavírus é mais devastador entre pobres, negros e pessoas de idade mais avançada do que entre ricos, brancos e jovens.
O mapeamento das controvérsias é um bom caminho para abrir as caixas-pretas da tecnologia, como nos ensinou Bruno Latour, mas considero que os contenciosos, as dúvidas, os temores, os embates de grupos de interesses, enfim, as controvérsias podem nos ajudar a projetar os cenários futuros. Começo pelo papel do Estado. Há uma furiosa disputa entre a doutrina neoliberal e o pensamento pela justiça social. A pandemia do novo coronavírus ocorre em um mundo dominado pelo ordenamento neoliberal. Essa doutrina começa tentando enfrentar a pandemia com o mercado, ou melhor, operando a lógica das empresas e da concorrência. Empresários e políticos neoliberais na Lombardia chegaram a declarar Milano non si ferma (Milão não para). Dias depois tiveram que recuar diante de corpos que eram recolhidos de pessoas que morriam sem atendimento hospitalar. O mercado não foi e não é capaz de conter o vírus, nem sua letalidade.
Além disso, a pandemia mostrou que o mercado e as empresas não são as coisas mais importantes de nossa existência. Apesar de Margaret Thatcher ter afirmado que “a sociedade não existe” – na linha de Friedrich Hayek, que somente considerava a existência de indivíduos e famílias orientados pelo mercado e pela moral –, foram principalmente os governos e inúmeras instituições sociais que tomaram medidas necessárias para a redução do contágio e a manutenção das condições mínimas de existência. Por exemplo, a moralidade de alguns cultos religiosos fundamentalistas na pandemia tinha um clamor semelhante ao dos empresários, principalmente aqueles vinculados às religiões que seguem as teologias da prosperidade ou teologias monetárias. Muitos líderes desses cultos combateram o isolamento social, pois fechamento de igrejas devido aos riscos das aglomerações prejudicava e efetivamente afetou o ímpeto e a missão de tornar cada fiel um empreendedor de si para enriquecer e dar o máximo para a sua igreja.
O empresário Junior Durski, dono da rede Madero, no dia 23 de março afirmou que “não podemos parar por conta de 5 ou 7 mil pessoas que vão morrer”[i]. A biopolítica aplicada pelo governo federal seguiu a lógica de sua base social expressa nas manifestações de empresários como Luciano Hang, Roberto Justus, Junior Durski , Marcelo de Carvalho, do mercado financeiro, entre outros. O argumento central das ações do presidente é que as consequências econômicas do isolamento social serão maiores do que as mortes. O governo federal brasileiro foi errático. A sua estrutura burocrática agia no sentido de assegurar políticas públicas e procolos da OMS enquanto generais, olavistas e bolsonaristas agiam em sentido oposto. O presidente chegou a bloquear o auxílio para estados e municípios, além de não se empenhar para converter indústrias e adquirir equipamentos necessários. Jair Bolsonaro viu na pandemia uma oportunidade de manter sua base social mais mobilizada. A biopolítica de sua gestão se tornou abertamente uma necropolítica.
A lógica neoliberal aplicada pelo bolsonarismo causou mortes que poderiam ser evitadas. Apesar da breve passagem pelo Ministério da Saúde, Nelson Teich, no começo de abril de 2020, em uma conversa com empresários no canal Oncologia do Youtube, questionou a compra de ventiladores mecânicos que estava sendo prevista com a seguinte frase: “O que você vai fazer com isso depois?”[ii]. Essa perspectiva é comparável ao raciocínio econômico de Paulo Guedes que disse em uma reunião ministerial: “Nós vamos ganhar dinheiro usando recursos públicos pra salvar grandes companhias. Agora, nós vamos perder dinheiro salvando empresas pequenininhas”[iii]. Dois fatos distintos, mas a mesma forma de pensar neoliberal.
Os Estados no mundo pós-pandemia estarão envoltos nas disputas entre a racionalidade neoliberal e a social. Seus governos poderão caminhar no sentido de reaquecer a economia com medidas de elevação da renda da população mais pauperizada e com a alocação de recursos para conter o empobrecimento das camadas médias, como propõem os ativistas sociais, ou tentarão aprofundar os cortes nos direitos trabalhistas que restam, diminuir salários dos servidores públicos para reequilibrar as contas estatais e decepar ainda mais os gastos com aposentadorias e com outros direitos a partir de truques contábeis e financeiros ou de modo direto, colocando ou não “granadas nos bolsos” de categorias profissionais, como disse Guedes.
Com a elevação do desemprego e com o aumento da precarização do trabalho a renda dos que vivem de salário provavelmente cairá. Além disso, a pandemia fará com que diversas empresas façam ajustes em suas estruturas, inclusive buscando consolidar o home office e o teletrabalho como relações terceirizadas. Simultaneamente, a proposta de renda básica de cidadania ganhará força, mas será igualmente combatida pelos grupos neoliberais e reacionários. No Brasil e nos Estados Unidos, a extrema direita alternativa e populista continuará utilizando a desinformação e o desvirtuamento dos fatos para destruir as possibilidades de debate racional sobre a ideia de renda mínima. A desinformação não é fundada apenas nos exageros, equívocos ou na irresponsabilidade pública. Trata-se da principal estratégia do novo reacionarismo e do neofascismo denominado por muitos pesquisadores de populismo de direita.
Os chamados Nrx, os neo-reacionários, continuarão investindo na doutrina anti-igualitária presente no texto Dark Enlightenment, em que o filósofo inglês Nick Land destaca as ideias de “Mencius Moldbug”, engenheiro de software e blogueiro de extrema-direita norte-americana cujo nome é Curtis Guy Yarvin. Esses diversos agrupamentos neoliberais são muito ligados aos empresários do Vale do Silício e, em especial, a uma mobilização sociotécnica chamada de singularidade. Uma frase contundente de um dos líderes da direita alternativa chamado Peter Thiel, empresário de tecnologia e fundador do PayPal, expressa bem o embate que vivemos e viveremos no mundo pós-pandemia: “I no longer believe that freedom and democracy are compatible” [iv].
Esse embate não é dualista. Existem diversas forças neoliberais que não romperam com a democracia. Mas para o neofascismo, grande parte dos populistas de direita, para a maioria da direita alternativa a democracia não é um sistema, mas um vetor, como escreveu Nick Land. A direção da democracia seria inconfundível. Por isso, no Dark Enghlighthment a democracia é apresentada como uma democracia expansiva e em movimento, colocada como um sinônimo indistinguível da expansão do estado.
A pandemia abriu caminho para compreender que nosso modo de vida pode ser mudado. Muitas pessoas perceberam que o estilo produtivista desestruturou seus lares e que é incompatível com uma vida psicossocialmente saudável. O culto ao digital e ao online perde força em segmentos das camadas médias que perceberam que a vida não pode se resumir ao artificial e ao digitalizado. Nesse sentido, podemos notar uma maior abertura para novos modos de se viver. Aí se apresenta uma possibilidade de ampliar as práticas colaborativas em direção a uma vida não focalizada no mercado, mas em soluções comunitárias e de equidade como condição básica para a liberdade. Muitos movimentos sociais na pandemia partiram para garantir a sobrevivência de suas comunidades e perceberam que podem estruturar redes de solidariedade permanentes.
A insustentabilidade da sociedade patriarcal apresentou seus traços tão evidentes quanto invisíveis para quem não percebe que o hábito e nossa formação social embotam nosso espírito crítico e turvam nossa visão. Muitas pessoas aprenderam a cozinhar e a realizar os cuidados de si e dos seus, mas outras não conseguiram dispensar suas empregadas domésticas, ocupação típica de um país que há 132 anos praticava a escravidão. A violência contra as mulheres também se ampliou na pandemia. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os casos de feminicídio cresceram 22,2% entre março e abril de 2020 em 12 estados do país, comparativamente ao ano passado[v]. Os movimentos feministas ganharão força pela nitidez da memória do que ocorreu na pandemia, mas isso será enfrentado pelos neopentecostais, atualmente maior grupo religioso que compõe o bolsonarismo no Brasil. A ideia de que a família exige a submissão da mulher é um dogma desses cultos. Edir Macedo chegou a divulgar um vídeo em que afirma que não permitiu que suas filhas fizessem faculdade para evitar que tivessem alguma chance de ser “a cabeça” do casamento[vi].
As disputas tecnológicas no mundo pós pandemia se acentuarão. São disputas geopolíticas pelos paradigmas do desenvolvimento tecnológico, são disputas comerciais, são embates por modelos de negócios versus direitos fundamentais das sociedades e seus grupos sociais. A China sai da pandemia menos abalada que os Estados Unidos e a Europa. Todavia, as empresas cujo modelo de negócios está estruturado com base na extração, processamento e modulação de dados tiveram um grande avanço devido ao crescimento da presença online da população conectada e da adesão das escolas ao ensino à distancia. Google e Microsoft ganharam mais usuários para suas plataformas educacionais, que costuraram diversos acordos com governos, prefeituras e instituições privadas.
OBrasil aprofundou sua condição de colônia digital. Durante a pandemia, o governo além de não incentivar ou criar soluções próprias para avançar nossas pesquisas e infraestruturas digitais, seja na formação de novas redes físicas e lógicas, seja no desenvolvimento de frameworks de inteligência artificial, assinou um acordo com a Cisco para acelerar a transformação digital brasileira. A Cisco é uma empresa que disputa com a Huawei a infraestrutura e os serviços de 5G no mundo. A nota publicada no site do ministério aponta os objetivos da parceria: “A Cisco vai trabalhar junto com o MCTIC no desenvolvimento de uma plataforma digital inteligente para dar suporte ao monitoramento, gestão e definição de políticas públicas no país, através da consolidação de informações sobre os diversos programas, ações, inciativas e atores”[vii]. Sem consultar as universidades brasileiras e seus centros de pesquisa, sem se preocupar em apoiar empresas nacionais na área de inteligência artificial, sem licitação, o governo vai aprofundando a entrega dos dados e da formulação de políticas tecnológicas para as corporações norte-americanas.
Outra tendência evidente é que muitos educadores perceberam esse processo que alguns pesquisadores nomearam de neocolonialismo de dados[viii]. Esse cenário indica que crescerão as iniciativas de fomentar plataformas nacionais e internacionais que não coletem dados pessoais ou que não comercializem esses dados. Também se aprofundarão as tentativas de supervisionar as plataformas das Big Techs. A extração de dados pessoais em excesso deverá ser cada vez mais questionada ao mesmo tempo que mais empresas irão aderir ao modelo de conversão do cotidiano em um fluxo de dados crescente.
Os técnicos dos Tribunais de Contas começam a adotar uma interpretação adequada do princípio constitucional da economicidade. Isso levará ao questionamento da entrega de dados do setor público às plataformas digitais em troca de interfaces e serviços gratuitos, uma vez que o que se recebe vale bem menos do que os dados coletados. Além disso, esse processo de extração de dados começará a ser melhor avaliado e exigirá processos licitatórios. Também crescerá a interpretação da conveniência e da legitimidade de se entregar dados sensíveis e estratégicos para corporações estrangeiras que os hospedam fora dos nossos limites territoriais e jurisdicionais.
Os embates na área de Saúde também indicam aspectos positivos e outros extremamente preocupantes. Os diagnósticos seguirão o caminho do uso de inteligência artificial. Assim, vão se tornar cada vez mais abrangentes e capazes de detectar com maior velocidade doenças e efeitos de certos medicamentos. Além disso, pressões para a obtenção de dados pessoais dos aparelhos móveis se somarão a novos produtos de coleta de dados, tais como câmeras com dispositivos de aferição da temperatura corporal. O uso da ciência de dados será ampliado na área de Saúde, pública e privada. Os convênios médicos e seguros saúde avançarão no uso de modelos preditivos com o objetivo de segmentar os “usuários caros”. A precisão desses modelos depende de uma grande quantidade e variedade de dados coletados. As tensões entre as fronteiras da extração legal e ilegal de dados se intensificará.
O embate sobre o meio ambiente parece que irá aquecer. Durante a pandemia vimos cair índices de poluição e, no Brasil, subir os desmatamentos da Amazônia, motivados pelo desmonte do Ibama, pelo incentivo às práticas ilegais de corte de árvores pelo… ministro do Meio Ambiente… A insustentabilidade de nosso modo de vida parece ter ganho mais adeptos. Problemas ambientais inimagináveis aos leigos se tornarão mais conhecidos do público em geral, tais como o impacto ambiental descomunal da coleta de dados digitais. Muitos acreditaram que o digital pouparia as florestas e seria um conjunto tecnológico sustentável. O que não estava nos planos eram os modelos de negócios baseados na extração constante e pervasiva de dados pessoais com a finalidade de realizar a predição do comportamento dos consumidores. Isso conduz a uma forte concorrência entre empresas que não podem deixar de adquirir amostras de perfis mais suscetíveis a compra de seus produtos e serviços. As plataformas e os brokers de dados obtendo cada vez mais dados para melhorar a qualidade de suas amostras. Esses dados são armazenados em grande data centers, boa parte deles com mais de 100 mil servidores, o que consome uma energia demasiadamente grande. O impacto ambiental dos data centers é um problema antigo que ganhará visibilidade.
Parece que passou da hora de ouvir os sobreviventes da Terra e os povos originários que aqui viviam antes da chegada do colonizador. Ailton Krenak, ao publicar Ideias para adiar o fim do mundo, foi contundente ao afirmar que o nosso desrespeito com a Terra, nossa mãe, implicará em nosso abandono. A pandemia do novo coronavírus talvez se torne uma endemia, mas a pandemia neoliberal baseando a vida exclusivamente na concorrência e no agigantamento das empresas não é viável. O ordenamento neoliberal já dura pelo menos 40 anos. É preciso superá-lo no mundo pós-pandemia. Não podemos considerar normal tantas mortes para manter o mercado funcionando. Não deveríamos aceitar tão passivamente a destruição das florestas pelo agronegócio. O neoliberalismo mata tanto ou mais que o coronavírus.
Sérgio Amadeu da Silveira é professor associado da Universidade Federal do ABC. Doutor em ciência política pela USP (2005), é membro do Comitê Científico Deliberativo da Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura (ABCiber). Autor dos livros Tudo sobre tod@s: redes digitais, privacidade e venda de dados pessoais, Exclusão digital: a miséria na era da informação e Software livre: a luta pela liberdade do conhecimento.
FONTE : http://www.comciencia.br/as-duas-pandemias-e-o-novo-normal/
FONTE : http://www.comciencia.br/as-duas-pandemias-e-o-novo-normal/
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