terça-feira, 1 de junho de 2021

Lula pode liderar uma geringonça à brasileira

 Lula pode liderar uma geringonça à brasileira

Nos estados do Paraná e do Rio de Janeiro, o centro e a esquerda O risco de Bolsonaro capitalizar protesto

Presidente da República é ao mesmo tempo maior causa e principal risco das manifestações

Por Maria Cristina Fernandes | Valor

 

Nos Estados Unidos, o "Black Lives Matter" uniu os jovens, os moderados do Partido Democrata e arrancou até um pedido de desculpas e a solidariedade do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas. No Chile, as manifestações de rua ensejaram uma Constituinte com diversidade inédita e, finalmente, na Colômbia as pessoas foram às ruas contra a "boiada" de uma reforma tributária regressiva. Tudo isso em plena pandemia. 

Os eventos ocorridos nos três países já seriam precedentes suficientes para a manifestação que aconteceu no sábado em mais de 200 cidades brasileiras. Em nenhum daqueles países houve mais motivos para protestos do que hoje os há no Brasil. Nenhum deles, porém, é governado por Jair Bolsonaro. 

No país em que havia um congênere, Donald Trump, o processo eleitoral já em curso canalizou a blindagem em defesa da manifestação. No Brasil, o presidente da República é ao mesmo tempo a causa maior e o principal fator de risco da onda de manifestações de oposição que ora se inicia. 

A adesão maior do que os organizadores imaginavam sugere que os protestos de sábado sejam apenas os primeiros de uma série. Já não há mais como colocar a pasta de volta no tubo, mas resta saber como a oposição vai se prevenir para evitar que o bolsonarismo seja o maior favorecido por esses eventos. 

Foi isso que aconteceu com a onda de manifestações de rua de 2013 para cá. É bem verdade que produziram grupos de renovação da política, mas o grande beneficiário do grito antissistema, de longe, foi o populismo digital de direita que desabrochou no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e, dois anos depois, encontrou no bolsonarismo seu berço esplêndido. 

Que o presidente use as manifestações do sábado para tentar se blindar contra o discurso de que ele, Jair Bolsonaro, é o maior provocador de aglomerações, é do jogo e já estava na conta. O risco maior está nos algoritmos do gabinete do ódio e na tensão hoje existente com as Forças Armadas. 

Foram esses algoritmos que transformaram o "#EleNão" da campanha eleitoral numa manifestação de mulheres lascivas contra Bolsonaro. Desta vez, o presidente já deu a deixa. Ao dizer que os protestos do sábado só não foram maiores porque "faltou erva", sugeriu que as ruas foram lotadas por maconheiros. O roteiro está pronto. Em breve vão encontrar fotos de jovens com cigarros de maconha, dizer que estavam nas manifestações e contrapô-los a postos de vacinação com cartazes de exaltação ao governo federal. "Não importa que seja 'fake'. É a pura verdade", reza a cartilha de Olavo de Carvalho. 

Basta ver como mentem os bolsonaristas na Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia para atestar que a produção de "fatos alternativos" está de vento em popa. Tanto que lideranças mais calejadas como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, preferiram colocar as barbas de molho. Num sinal de que é cedo para apostar no que pode sair das ruas, Lula divulgou ontem imagens de encontros virtuais com governadores de seu partido para a discussão da vacinação nos Estados e da lotação dos hospitais. 

Por isso é cedo demais para dizer que o impeachment ficou mais próximo. A entrevista do presidente do PP, o senador Ciro Nogueira (PI), ao Valor, ontem, mostrou como o partido que comanda a Câmara tem sido beneficiário deste governo e não pretende mexer em jogo que está ganhando a um preço cada dia mais alto para o erário. Tampouco o procurador-geral da República, Augusto Aras, tem dado sinais de que esteja mais disposto a denunciar o presidente do que esteve ao longo desses 29 meses de incúria. 

Enquanto isso, a pós-verdade bolsonarista ruma para se blindar no Congresso, onde tramitam projetos que proíbem que as plataformas de rede social os cancelem, e conta com a modorrenta tramitação dos inquéritos das "fake news" no Supremo. Pró-ativo na denúncia contra o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, o relator do caso no STF, o ministro Alexandre de Moraes, parece mais sossegado na condução do inquérito que atinge o gabinete do ódio. 

O potencial de estrago dessa fábrica de notícias falsas se agiganta pelo momento de tensão nas relações com as Forças Armadas. Em Pernambuco, Estado em que houve a reação policial mais violenta contra manifestantes, cegando com balas de borracha duas pessoas que dela não participavam e jogando spray de pimenta contra a vereadora do PT, Liana Cirne, cruzam-se todas as esquinas do imponderável. 

O Estado é governado por um partido-chave na articulação da oposição, o PSB, e tem, como presidente local do PTB, o ex-coronel da Polícia Militar, Luiz Meira. Ex-comandante do Batalhão de Polícia Militar do Choque, Meira foi colocado no comando do partido por intervenção do presidente nacional, Roberto Jefferson, e atua em dobradinha com o ministro do Turismo, Gilson Machado, na oposição ao governo local. Há estrutura local, portanto, para amplificar o desgaste entre governador e PMs. 

O governador Paulo Câmara anunciou de imediato a apuração de responsabilidades e a indenização dos manifestantes feridos, mas é nos desdobramentos sobre a punição dos envolvidos que se verá a efetividade de seu poder sobre a Polícia Militar. Além de vídeos divulgados em blogs não oficiais da PM associando a manifestação ao comunismo, a associação local de cabos e soldados soltou nota atribuindo a "partidos de esquerda e supostos defensores das classes menos favorecidas" o apedrejamento de ônibus e o "pânico" causado na população. A nota repudia a punição dos PMs e diz que eles agiram para defender, inclusive, o Palácio do Campo das Princesas, sede do governo. 

A capacidade de Bolsonaro de incitar insatisfações entre policiais pôde ser medida pelo aumento concedido à Polícia Militar do Distrito Federal às vésperas do congelamento de salário dos servidores. O aumento à PM-DF, que está pendurada no Orçamento da União, deflagrou demandas de isonomia no país. 

A faísca no palheiro da Polícia Militar de Pernambuco é a combustão que o presidente da República precisa para embaralhar as cartas que hoje lhe são desfavoráveis na apuração, pelo Exército, das transgressões do general Pazuello. Baderna não é colocar um general de Exército num palanque de um presidente que nem partido tem, é um governador não ter comando de sua polícia. Mentira? Com certeza, mas a oposição ainda tem que se mostrar capaz de rebatê-la. 

https://valor.globo.com/politica/noticia/2021/06/01/o-risco-de-bolsonaro-capitalizar-protesto.ghtml

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