Quem derruba presidente não é o Congresso, é povo na rua, diz Temer à Folha
Ex-presidente pede semipresidencialismo como saída para sistema 'roto e esfarrapado'
Igor Gielow | Folha
Um impeachment de Jair Bolsonaro só seria viável com povo na rua, pois o Congresso não derruba ninguém sozinho. A opinião é do antecessor do presidente, Michel Temer (MDB), que chegou ao cargo na esteira do impedimento de Dilma Rousseff (PT), em 2016.
Para ele, que nega a acusação feita pelo ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha de que teria tramado a queda da ex-chefe, impeachment causa "trauma institucional".
Aos 80 anos, Temer está mais ativo do que nunca em seu escritório de advocacia no Itaim-Bibi, bairro nobre paulistano. Recebe clientes e políticos, e trabalha naquilo que considera saída para a entropia política brasileira: o semipresidencialismo.
Modelo análogo ao francês e ao português, nele o presidente divide poderes com o primeiro-ministro, não sendo uma proverbial "rainha da Inglaterra" a dar palpites. Temer diz que só "aguentou aqueles dois anos e meio" porque aplicou uma versão da fórmula ao fazer com que o Congresso indicasse ministros.
A ideia vem sendo conversada com ministros do Supremo e líderes de partidos da dita terceira via, conceito que Temer vê com reservas.
Ele sugere a ideia de que o próximo presidente precisa ser alguém com experiência, mas rejeita concorrer: "Já fiz de tudo".
Dois anos após ter sido preso por quatro dias no escopo da Lava Jato, o ex-presidente tem se livrado da maioria das acusações, mas nega clima de impunidade. "Combate à improbidade está prevista no sistema normativo", disse.
O ex-presidente também negou que tenha aberto as portas para a ocupação militar do governo, a partir da influência de generais na Esplanada. E criticou a ida do general Eduardo Pazuello ao Ministério da Saúde.
Qual vantagem há no semipresidencialismo?
Você dá atribuições ao presidente, mas só tem governo, com primeiro-ministro indicado por ele, se tiver maioria parlamentar. Mas tem de ser semi, não parlamentarismo puro, porque o brasileiro quer eleger o presidente, quer o ver com poder.
Já falou tanto em reduzir o número de partidos. Por lei, você não consegue. Nesse sistema, você tem um grupo de situação, outro da oposição. Conceitualmente, são partidos. Depois do golpe de 1964, você tinha o MDB e a Arena, lá tinha partido. Hoje você tem siglas, você vê a minha (o MDB).
Você dá responsabilidade ao Legislativo. Hoje o sujeito se reelege pedindo verbas. Se ele for governo, vai dizer que governou bem. Evita o trauma institucional do impeachment, eu passei por isso. E pegou moda.
O presidencialismo brasileiro está roto e esfarrapado. Se o governo cair, no semipresidencialismo, isso ocorre com naturalidade, como em Portugal e na França. Nós temos 33 anos de Constituição, e já tivemos dois impeachments.
O sr. está trabalhando numa proposta, não?
Isso começou no meu governo, conversando com o ministro Gilmar Mendes, que era presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Discutimos sobre a ideia de mudar o sistema de governo, em face da experiência que eu tive, inclusive, por ter trazido o Congresso para governar comigo.
Foi o que me sustentou, eu aguentei aqueles dois anos e meio com apoio do Congresso. Formatamos um projeto e agora ele está sendo rediscutido. Eu até me surpreendi quando o ministro Luís Roberto Barroso [atual presidente do TSE] disse ser a favor.
Sempre que há crise, fala-se nessas alternativas. Isso passa? Não é casuísmo?
Não sei se passa, mas saímos dos problemas menores e desagradáveis, e vamos para o grande tema. Seria bom inclusive para o presidente, se ele adotasse a ideia.
Eu propunha que devia ser para 2026, porque quem foi eleito agora o foi sob um regime jurídico que permite reeleição. Mas não sei, nessa situação dramática que existe hoje, não sei se não seria o caso de aprovar agora para vigorar logo em 2022.
O sr. já falou com Bolsonaro sobre isso?
Não. Eu não falo com ele há uns seis ou sete meses. Disseram que eu era um conselheiro, mas não, eu só conversei ocasionalmente, como no caso da explosão do porto de Beirute [quando Temer, de origem libanesa, liderou uma delegação com ajuda humanitária brasileira].
Como o sr. vê o atual estágio da crise, com CPI, protestos?
Ela é preocupante, mas não deve tirar nosso otimismo.
Acho que estamos num sistema pautado pela Constituição que permite o controle das autoridades. Você tem uma acusação, você investiga. Para o meu paladar, você tem de investigar com tranquilidade, cumprindo ritos. Nos últimos tempos, toda vez que vai investigar, cria-se um alarde tão grande que foge dos parâmetros constitucionais.
A crise não vem do fato de o presidente ter feito inicialmente a opção de ignorar o Congresso e, depois, partir para o conflito institucional?
Acho que ele compreendeu rapidamente que sem Congresso não se governa. Essa ideia de dizer que você pode ter só a melhor parcela, isso para o presidente não vale.
Tome o caso do centrão, que as pessoas criticam. Se você não quer o apoio do centrão, tem de dizer que não quer o voto dessa gente quando for enviar uma lei, votar uma medida provisória. Ele começa perdendo 120, 130 votos. Você tem de governar com o que tem. Quem chegou lá não foi por centelha divina, foi por voto popular.
Segundo ponto: agredir instituições é péssimo e inconstitucional.
E a volta dos protestos de rua, ainda que muito confinados à esquerda? Ele derrete em pesquisas. Seu ex- ministro Gilberto Kassab disse uma hora o impeachment poderia ser inevitável, o sr. concorda?
Agora, quem derruba presidente não é o Congresso, é o povo nas ruas. Povo nas ruas sensibiliza o Congresso, que acaba acolhendo a manifestação da rua. Veja, eu tive aquelas tais denúncias, não aprovaram porque não tinha povo na rua. Não tinha um cidadão na frente do Congresso [houve protestos contra Temer, mas de intensidade reduzida].
Mas veja, se a coisa crescer demais... no presente momento, é mais um esquema eleitoral, não uma consciência coletiva como em 2016, que havia começado em 2013. Eu vi pesquisas mostrando uma divisão da população sobre impeachment. Mas enfim, levar adiante um impeachment pode causar distúrbio.
O processo de impeachment não é jurisdicional, é político. De conveniência e oportunidade. Se aquilo chegar ao Senado e a Casa considerar que há o risco de um conflito civil, como o processo é político, por mais que as provas sejam robustas, talvez o melhor seja esperar as eleições.
O sr. não apoia a ideia então?
Eu não acho útil, com toda a franqueza.Se formos cronometrar, vai levar oito, nove meses, chegando nas eleições. Vale a pena? Convenhamos, o pessoal que apoia o presidente é tão ou mais ativo do que do PT.
É o cenário [da invasão por apoiadores inconformados com a derrota de Donald Trump do] Capitólio. Taí. E lá é a maior nação democrática do mundo. Não sei se não é melhor ser retirado pela via eleitoral. Não quero entrar no mérito se deve ou não haver, é uma análise de consequência. Acho que vai ser tumultuado até as eleições, mas a aproximação delas vai descomprimir o cenário. Seja pelo Lula, seja pela terceira via.
Como o sr. avalia os nomes da terceira via?
Eu conversei com vários candidatos, são todos em princípio viáveis. O problema é que para isso é ter uma candidatura única. Se você tem seis nomes e os seis querem ser candidatos? O eleitor precisa ter uma opção. É preciso alguém com razoável experiência nas questões políticas. Não dá para personalizar.
E o Lula? Ele sai de vitórias jurídicas, mas o antipetismo é uma grande força.
Tanto que se espalha por aí que o melhor candidato para o Bolsonaro é o Lula e vice-versa, uma obviedade.
Falando em vitórias judiciais, o sr. também colheu as suas do ano passado para cá.
Sim, foram três absolvições diretas, acho que tem uns dois casos menores para resolver. Foram absolvições no quadrilhão do MDB, o caso dos portos e a gravação daquele rapaz (o empresário Joesley Batista).
Que parou o seu governo.
Vou te contar, no dia da gravação, eu tinha falado com o Rodrigo Maia [então presidente da Câmara] e tínhamos 326 votos para a reforma da Previdência. Íamos colocar para votar em duas semanas. Eu ia completar o ciclo de reformas.
A partir daí, só se defendeu.
Sim. Eu fui firme, tinha gente pregando minha renúncia, e fui até o fim. Veja a gravidade, absolvição sumária significa que o juiz olhou oito páginas da denúncia e mandou arquivar. Estamos limpando agora toda a área, com rapidez.
Desde sua prisão em 2017, houve uma inflexão na Operação Lava Jato. Hoje, ela foi extinta, e os tribunais superiores adotaram uma postura dita mais legalista. Não se passa a imagem de impunidade?
Não. Acho impróprio dizer que quem não cuida mais da Lava Jato, pessoas físicas, significa que acabou o combate à corrupção. Combate à improbidade está prevista no sistema normativo.
Sergio Moro encarnava isso. Ele ainda é relevante?
Ele tem simpatizantes, não sei se o suficiente para uma candidatura.
O fato de o ministro André Mendonça ser o cão de guarda de Bolsonaro não é ruim para sua candidatura ao Supremo?
Eu tenho a melhor impressão dele, trabalhou no meu governo. E veja, o Lula nomeou três ministros e veja o que aconteceu no mensalão [quando eles votaram por condenar a cúpula petista].
Como o sr. avalia a questão do voto impresso e do distritão?
Quanto ao voto, não vejo necessidade de mudar. Sobre distritão, lá atrás eu até apoiava, mas isso atrapalha os partidos. Mas eu acho que no final não vão mexer em nada.
Como o sr. vê o papel dos militares hoje? Eles bancaram Bolsonaro no segundo turno e foram fiadores na transição, entraram no governo e acabaram no Pazuello.
Seria natural alguém como o Bolsonaro levar muitos militares. O que não se pode é entregar o governo todo. Os militares são preparados, me deram um auxílio extraordinário. No meu governo pedi ajuda às Forças Armadas para apoiar as polícias na varredura de presídios. No outro ano, houve só uma ou duas rebeliões.
Mas são tarefas afeitas aos fardados. Já o Ministério da Saúde...
Pronto, eu ia dizer isso. Cada um no seu quadrado. Você vê, o Pazuello fez um belo trabalho acolhendo venezuelanos. Agora, tirar de lá para ir a um lugar que não é bem a função dele...
Os militares voltaram a ter preponderância política no seu governo. O general Sérgio Etchegoyen (Gabinete de Segurança Institucional) tinha muita influência, o general Joaquim Silva e Luna assumiu a Defesa. Isso não soltou as amarras para que se empolgassem com Bolsonaro?
Eu tinha apoio das Forças. Quando levei o Etchegoyen, precisava alguém da área.
Quando criei a pasta da Segurança, eu chamei o Raul Jungmann (então na Defesa e que assumiu o novo ministério), concordamos em que se deixasse o Luna, que era o secretário-executivo da Defesa, e o trabalho seria mantido. E o Luna era da reserva. Não acho que foi o momento de entrada dos militares na política.
E o episódio do tuíte do general Eduardo Villas-Boâs [que ameaçou o Supremo antes de votar um habeas corpus que impediria a prisão de Luiz Inácio Lula da Silva]?
Ele fez aquilo em caráter pessoal. Mas as pessoas interpretaram daquele jeito [como ameaça].
Para bom entendedor...
Meia palavra basta, eu sei.
Havia uma insatisfação grande com o PT, relatada pelo próprio Villas-Bôas.
Havia sim. O comandante talvez tenha expressado a angústia do Exército.
Se o Lula ganhar, os militares voltam quietinhos para o quartel?
Acho que sim. São obedientes à Constituição e ninguém quer repetir 1964.
O fantasma de um golpe é bom para os dois lados.
Não acredito em golpe.
RAIO-X
Michel Temer, 80
Nascido em 1940, em Tietê (SP), de ascendência libanesa, Michel Miguel Elias Temer Lulia é especialista em direito constitucional. No então PMDB desde 1981, foi procurador-geral do estado de SP, secretário da Segurança, deputado federal e presidente da Câmara (1997-2001 e 2009-10). Vice na chapa de Dilma Rousseff (PT) em 2010 e 2014, assumiu o governo após o impeachment de 2016. Hoje advoga em S
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