O presidente brasileiro encarna um movimento complexo, herdeiro do anticomunismo, da violência da ditadura militar, da intolerância religiosa dos evangélicos, mas também do populismo antiglobalista, analisa o historiador Odilon Caldeira Neto em entrevista ao Le Monde.
Bruno Meyerfeld | Le Monde
Correspondente Rio de Janeiro
Nascido em 1984, Odilon Caldeira Neto é professor de história contemporânea da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), em Minas Gerais (sudeste do Brasil). Especialista em movimentos autoritários, conservadores e neofascistas, ele coordena o Observatório de extrema direita do Brasil.
A chegada ao poder em 2018 do candidato da extrema direita, Jair Bolsonaro, pegou o mundo de surpresa. O Brasil há muito é considerado imune a esse movimento político...
Sim, e estávamos seriamente errados! Desde o fim da ditadura em 1985, pensava-se que era história antiga. Que nasceu um novo Brasil, consensual e democrático. Nós nos iludimos. Esquecemos que o Brasil tinha uma longa tradição de extrema direita e que de fato ela nunca desapareceu
Quando foi que surgiu o surgimento da extrema direita no Brasil?
No final do século 19 e início do 20. Em 1889, o império [estabelecido após a independência do país em 1822] foi abolido e a República foi proclamada. O Brasil estava se modernizando, democratizando, secularizando, urbanizando e industrializando. Para uma parte da elite, que teme o fim da "unidade moral" da nação, isso é demais. Organizou-se em associações, como a Liga de Defesa Nacional, em 1916, para reivindicar um Estado autoritário e cristão.
Na década de 1920, esse movimento se acelerou. A criação em 1922 do Partido Comunista Brasileiro (PCB) assustou parte da classe média urbana. O fascismo de Benito Mussolini, que chegou ao poder no mesmo ano na Itália, é visto por muitos como o único baluarte contra o comunismo. Pequenos grupos de inspiração fascista estão surgindo, como a Legião Trabalhista Cearense [em 1931] , no estado do Ceará, que desempenha importante papel localmente.
A criação, em 1932, do movimento fascista Ação Integralista Brasileira (AIB) constituiu um ponto de inflexão?
Este é realmente um momento crucial. Embora pouco conhecido, a Ação Integralista foi o maior partido fascista fora da Europa, com várias centenas de milhares de membros! Para resumir a sua história, a AIB foi fundada pelo jornalista e intelectual Plinio Salgado (1895-1975). Durante uma viagem à Itália, ele conheceu o Duce. Voltando ao Brasil, esse homenzinho carismático e bigodudo se propõe a importar o movimento fascista para o Brasil. Com sucesso.
Mas o "integralismo" é complexo. A AIB é uma organização com disciplina militar cujos membros, os "camisas verdes", marcham em fileiras cerradas, de braços abertos. Anticomunista frenético, Plinio Salgado defende um Brasil hierárquico e ditatorial e uma regeneração da sociedade com o advento de um "novo brasileiro". Seus adeptos incluem vários anti-semitas notórios. No entanto, Plinio Salgado vai adaptar o fascismo à realidade do Brasil, um país fortemente miscigenado. Ele defende a harmonia das "três raças" – branca, negra e indígena. O símbolo do movimento é o caractere grego sigma (Σ), que significa "soma" ou "unidade". Para se cumprimentar, os integralistas gritam "anauê!", palavra da língua indígena tupi. Não há perspectiva abertamente racista no integralismo, ao contrário de outros movimentos fascistas ou nazismo.
Mas o integralismo não vai durar. Em 1937, o presidente Getúlio Vargas decreta a ditadura do Estado Novo [que durará até 1945] . A AIB é então dissolvida e Plinio Salgado é forçado a um exílio de seis anos, em 1939, em Portugal. Com a derrota de Mussolini e depois de Hitler em 1945, as ideias fascistas ruíram. De volta ao Brasil, em 1946, Plinio fundou o Partido de Representação Popular (PRP), e tentou se reabilitar moderando seu discurso. E rapidamente perde influência. A extrema direita fica silenciada...
O que o integralismo e Jair Bolsonaro têm em comum?
Anticomunismo frenético. Esse mito de um inimigo de dentro que deve ser neutralizado a todo custo. Mas Jair Bolsonaro difere de Plinio Salgado em muitos aspectos. Em primeiro lugar, seu discurso é mais radical contra as minorias, especialmente as étnicas. Mas também e sobretudo porque nunca quis criar um movimento político organizado. Depois de ter trocado de partido oito vezes, Bolsonaro não é mais filiado a nenhuma formação. Ele é acima de tudo um encrenqueiro solitário e incontrolável, que vive e se alimenta do caos.
Em 1964, ocorreu o golpe militar, marcando a chegada de uma ditadura que duraria 21 anos. Como a extrema direita está evoluindo?
A ditadura militar brasileira é única. Nela se chocam várias tendências: uma linha dita "moderada", ligada a um certo legalismo, e uma linha dura, repressiva, violenta e autoritária. Esta linha dura funciona como um influente grupo de pressão dentro do poder, em particular durante os anos chumbo, entre 1967 e 1974, sob as presidências dos generais Artur da Costa e Silva e Emilio Garrastazu Médici. Assassinatos e torturas de oponentes são então executados em grande escala.
A partir de 1974, a ditadura inicia uma lenta "descompressão", e a linha dura radicaliza-se. Oposta à democratização, exige uma intensificação da purificação e se organiza em torno de grupos paramilitares, como o Comando Comunista de Caça (CCC, criado em 1963). Seus ativistas atacam os estudantes de esquerda e instigam, em vão, vários ataques, com o apoio de generais conservadores.
Jair Bolsonaro, capitão da artilharia treinado na ditadura, é herdeiro desta linha dura?
O Bolsonaro não aderiu ao CCC e não está diretamente associado a este movimento. Mas a "linha dura" é provavelmente sua principal matriz intelectual. Eleito deputado em 1991, ele se apresenta como um campeão das "tropas" e dos nostálgicos da ditadura. Entre 2011 e 2014, se opõe violentamente ao trabalho da Comissão Nacional da Verdade, responsável por investigar os crimes da ditadura, declarou-se abertamente a favor da tortura e prestou homenagem aos líderes linha-dura.
O autoritarismo e, acima de tudo, a violência são parte integrante do bolsonarismo. Além do Brasil, Jair Bolsonaro também elogia regularmente os "méritos" de outras ditaduras latino-americanas, mais duras e sangrentas, como a de Augusto Pinochet no Chile [1973-1990], ou a de Alfredo Stroessner no Paraguai [1954-1989] . "[
Depois veio a Nova República, em 1985, e a extrema direita desapareceu novamente...
Na opinião pública, a extrema direita é então associada aos assassinatos e aos piores abusos cometidos durante a ditadura. O Brasil finalmente respira, ganhando confiança em sua democracia. Durante 20 anos, a extrema direita manteve-se discreta: observadores, jornalistas políticos e pesquisadores qualificaram-na de "vergonhosa", em particular no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011), período em que o país conheceu um crescimento espetacular. E alguma harmonia nacional.
Mas a extrema direita não desapareceu. Veja-se o relativo sucesso, na década de 1990, do Partido para a Reconstrução da Ordem Nacional (Prona) e de seu dirigente, Enéas Carneiro. Nascido em 1938, esse cardiologista de estilo excêntrico era identificável por sua longa barba negra de guru e seus clipes de TV, nos quais vociferava ao som da Quinta Sinfonia de Beethoven. Na eleição presidencial de 1994, obteve 7,38% dos votos. Terceiro eleito na votação, ele é apelidado de "Le Pen brasileiro".
Bolsonaro tem homenageado regularmente o seu "herói". Os dois homens têm muitas diferenças, no entanto. Como Enéas, ele compartilha o lado encrenqueiro e uma linha conservadora, hostil ao aborto e aos direitos LGBT. Mas o Enéas era um cientista elitista, que valorizava a meritocracia e a competência acima de tudo. Nada a ver com Jair Bolsonaro, estilo vulgar, amante das "fakew news", que exibe constantemente a sua fé cristã.
Quando podemos considerar que a extrema direita renasce?
Sob a presidência de Dilma Rousseff (2011-2016). Vários eventos participam desse despertar. Primeiro, há a Comissão Nacional da Verdade, que indignou os militares, mas também as decisões do Partido dos Trabalhadores (PT), a favor do aborto e das pessoas LGBT, que horrorizaram os evangélicos. Acima de tudo, há a crise econômica, que marcou o fim dos anos de boom. Parte da extrema direita, crítica das políticas "assistenciais", então se apropriam do ultraliberalismo, com grupos como o Movimento Brasil Livre (MBL), que atraía jovens das classes médias urbanas.
Em 2016, esses grupos heterogêneos se unem para formar o que é chamado de a "nova direita", que domina o debate público e protesta com sucesso para exigir o impeachment de Dilma Rousseff. Bolsonaro, por sua vez, surfa com habilidade nesta onda de "libertação", retomando, em 2018, essas tendências ultraliberais, evangélicas e nostálgicas da ditadura. Ele também atrai para si os grupos mais obscurantistas, como os seguidores de Olavo de Carvalho, um ex-astrólogo, antivacina e convicto de que a Terra é plana, que nos últimos anos se tornou um verdadeiro guru da extrema direita.
Finalmente, qual é a de Jair Bolsonaro?
É difícil colocar em uma caixa. O Bolsonaro é o produto da longa e contraditória história da extrema direita brasileira. Ele herda o autoritarismo do início do século 20, do anticomunismo e conspiração teorias de integralistas, a violência do regime militar, o estilo excêntrico de Enéas Carneiro, o anti-neoliberalismo, as manifestações contra Dilma e a intolerância religiosa dos evangélicos.
Também é influenciado pelas tendências globais, esse populismo antiglobalista carregado pelo americano Donald Trump, o húngaro Viktor Orban ou o italiano Mattaeo Salvini. A tudo isso, Bolsonaro acrescenta seu toque pessoal: vulgaridade, fake news, ataques às minorias... O bolsonarismo não representa um bloco homogêneo, mas um movimento complexo, elástico, em construção, que não se compreende sem olhar para o passado.
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